“Cansado de Guerra” é uma série de postagens, uma espécie de desomenagem (beijo, Tom Zé), um memorial de guerra às avessas, às maravilhosas costelas que me serviram de generais inimigas ou, mais frequentemente, de campo de batalha propriamente dito. E que fique claro: nomes serão preservados, assim como minha conta bancária de um futuro processinho. Não se trata de um resgate de identidade ou qualquer outra balela profunda. O que me move, como sempre, é a mais pura e discarada galhofa - e largue meu “i” inerrôneo, revisor!
Modéstia à parte, sempre fui de causar certo frisson. Não dos que provocam histeria coletiva (longe disso), mas o suficiente pra, vá lá, ser lembrado como alternativa viável em tempos de seca amorosa, nos impiedosos anos 90, no sertão da Bahia. Na geografia onde ter todos os dentes na boca já qualificava o sujeito ao namoro, e a ausência de mau hálito era quase garantia de abrir as “Portas da Esperança”, eu - às favas a modéstia! - era praticamente um Gable sem garbo.
Mas não era só na estética e nos Halls de cereja que eu me garantia: antes mesmo de ser o relator da própria decadência física que hoje vos aborrece as retinas cansadas, eu fui um empreendedor. Visionário, até, como se verá ao fim deste excerto. Duvida? Bem, hoje em dia, todo coach de quinta fala em “encontrar seu diferencial de mercado”, certo? Pois aos quinze, com muita testosterona represada, eu já tinha achado o meu: ler. Nada de Paulo Coelho e outras merdas juvenis, atenção: Dostoiévski, Homero, Gabo, Goethe - cujo “Fausto” eu não entendia porra nenhuma, mas do qual decorei frases com vistas a umedecer orifícios alheios. O expediente era laborioso. Embora a biblioteca do Colégio Cenecista, em Ibotirama, não fosse exatamente a de Alexandria, era o Olimpo possível, de onde surrupiei algumas das obras pra pavonear charme entre as, digamos, mentalmente desfavorecidas. Minha veia literária era, portanto, movida não à sede de conhecimento, mas à sacanagem.
Eis, porém, que surge a musa inalcançável: Márcia Maria dos Santos Oliveira - ou Oliveira dos Santos, minha memória, tão precisa pra lembrar frivolidades (como a data de aniversário de minhas três filhas), falha miseravelmente quando preciso. A moça era uma lindeza: um clone ribeirinho da Geena Davis, atriz americana que, dentre outros, estrelou “Thelma & Louise”.
Márcia militava na “Turma da Xuxa”, tropa de meninas asseadinhas, organizadinhas e corretinhas, que sentavam-se logo na primeira fileira da sala, abaixo do ventilador. Diferentemente das demais, porém, ela não se comovia com meu ar blasé, enquanto fingia ler “Crime e Castigo” durante as aulas de geografia e inglês. Mirava-me com o mesmo interesse que eu dedicava à matemática: zero. Porém (ai, porém!), os ventos da mudança soprariam a meu favor. Um belo dia, convocada ao quadro-negro para colaborar com alguma merda, recusou com um sussurro meio envergonhado, direcionado à professora: tinha alergia ao giz. Aquilo me entraria pelos ouvidos como uma revelação bíblica: um ponto fraco, enfim, uma brecha, uma fratura no escudo!
Daí à psicopatia, foi um pulo.
Com a frieza dum Raskolnikov, planejei minuciosamente o crime por algumas semanas. Revisei horários, avaliei o comportamento das professoras e escolhi a que ligaria o ventilador logo cedo. Previsibilidade era importante. Então, no dia escolhido, cheguei mais cedo, esmaguei um giz até virar pó, espalhei por cima de uma das pás do ventilador e sentei, paciente e compenetrado, esperando que o plot se desvelasse. Era a armadilha perfeita, com requintes de crueldade, admito. Hoje em dia, talvez me rendesse um processo. À época, porém, era apenas tesão em estado bruto - o que não sei se melhora muito o ensejo, mas, enfim...
A professora entrou, deu bom dia e ligou o ventilador. Imediatamente, a névoa branca fez sua dança macabra pelo ar e pousou sobre a cabeça de Márcia, com a delicadeza de gás mostarda. Foi tão lindo que quase me recorda da cena do sangue em “Carrie, a Estranha”. Em poucos segundos, Márcia desataria a se coçar, desesperada e incontrolavelmente, era a hora e a vez de brilhar: levantei-me, fúria calculada, indignado, como quem a um linchamento presencia, e cínico, apontando os baderneiros de sempre - meus amigos, inocentes neste prélio.
“Caralho, vocês são demais! Isso é brincadeira que se faça? Ela é alérgica, pô! Professora, posso acompanhar Márcia à secretaria?”
Ninguém entendeu porra nenhuma. Nem precisava: três minutos depois, estávamos sentados lado a lado, ela fungando, eu oferecendo compaixão - depois, lenços, palavras ternas, maturidade para repreender o comportamento infantil “alheio” e uma generosidade afetada que Irmã Dulce teria dificuldade em sustentar.
Funcionou: alguns dias depois, Márcia passaria a reparar nos livros, a perguntar das personagens e histórias que eu, pretensiosamente, lia. Contei-lhe do plano do giz e dos meus intentos. Ela riu - e engatamos um namorico que duraria, ali, algum tempo. Meses mais tarde, porém, como todo adolescente descompromissado de minha geração, eu acharia companhia mais interessante e colocaria um par de chifres em sua cabeça.
Moral da história: o cachorro que se foda. O melhor amigo do homem é o planejamento.
E o giz.
Marcone H. de Sousa é baiano, cronista, acredita que o grande mal escondido por trás da I.A. é o absurdo uso que fazem da mesma como terapia, admite escrever pior que a mesma, mas já tinha 3 livros publicados quando o chatGPT ainda era só mato.
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