DESCARGA NO CAGALHÃO
Sertanejo universitário, Balneário Camboriú e a vergonha alheia que atinge a todos com um mínimo de senso estético.
Amável leitor(a),
Antes de enveredar pela leitura abaixo, dê lá uma verificada no baú que utiliza como pequena farmácia aí, em sua casa, e confira se você tem sal de frutas. Positivo e operante? Então, me acompanhe na dissecação que se segue - dado que indigesta, insalubre e nauseabunda.
Afinal, que caralhos acontece com a música brasileira? A mais nova pérola do cancioneiro tupiniquim atende pelo nome de “Descer pra BC”, de uma dupla cujo nome recuso-me a reproduzir, que conseguiu o prodígio de, plagiando “Asereje”, da Banda Rouge (já, em si, uma tortura sonora), obrar algo ainda pior: desacorçoada e desacelerada, possivelmente para acomodar a reduzida capacidade mental de quem ouve e gosta - proeza que, reconheçamos, merece investigação científica.
Uma música que se presta a celebrar o esgoto a céu aberto que virou-se Balneário Camboriú, em Santa Catarina (como se este recanto de bolsonaristas fosse, assim um éden turístico), mas que acaba por soar como trilha sonora dum melancólico fim de festa, onde até o banheiro químico se recusa a receber o cagalhão.
Ninguém atura mais tanta imbecilidade nas letras de músicas que verbalizam uma ostentação nababesca e idiota, bebedeira desenfreada e uma quase obsessão pelo verbete “curtir” - malditas sejam as redes sociais, aliás. Nesse contexto, BC vira-se num estado de espírito forrado de silicone, bronzeamento artificial, cagalhões a boiar e cérebros em estágio terminal. Sejamos francos: o sertanejo universitário sempre foi calhorda (e eu desanco o gênero a valer no meu terceiro livro), mas “Descer pra BC” não apenas o empurrou ao precipício como o fez de marcha-a-ré e engatando uma dancinha de tiktok no processo. Essa desgraça sonora é a epítome da degeneração cultural por que passamos, com letras que glorificam a futilidade, numa estética que recicla o que existe de pior no pop internacional e com uma execução tão, mas tão medonha que faria até o Rouge processar por difamação.
A falência de nossa sociedade, contudo, foi ter erigido o altar da ignorância como se o fizesse com um troféu. É engraçado, porque isso começou com a subversão do trabalho de gente importante como Paulo Freire, cuja obra se volta à valorização dos saberes populares e da oralidade, no contexto da educação de adultos e a importância de reconhecer e respeitar os saberes das populações marginalizadas. Atentem bem, “marginalizadas”. Daí para termos um punhado de filhinhos de papai, rabo sentado na Hilux do ano, propalando agrestias como “nóis trupica, mais não cai”, “caba não, mundão véi sem portêra” e demais ignomínias correlatas como se fosse algo genuíno, vai uma enorme distância. Em absoluto, esse é o reflexo de um povo que critica a presença de disciplinas encefalomotrizes (chupa, Tom Zé), como a Filosofia, na grade curricular dos filhos e que foi seguidamente convencido de que microcosmo cultural é uma virtude. O sertanejo universitário virou-se em trilha sonora de uma visão tosca e provinciana de mundo, onde a burrice é confundida com autenticidade e questionar o status quo virou “coisa de intelectual”. O resultado? Gente exaltando mediocridade e estupidez como arte, relegando criatividade ao limbo.
Mas nada disso é por acaso. A indústria sertaneja é basicamente uma máquina de fabricar “sucessos” do mesmo molde, numa linha de montagem que já não abre espaço para a inspiração: letras e mais letras são produzidas em série, quase como o apertar de parafusos, em companhias que se especializaram em espremer fórmulas batidas - ainda mais agora, que já existe chatGPT! Procure saber quem são essas empresas, todas elas com sede em Goiânia (não coincidentemente, cidade que deu 64% de votos ao Bozo).
Esqueça, portanto, qualquer traço de composição mais profunda de um artista que o faça com a alma: nesses lugares, tudo é friamente calculado para agradar os algoritmos e playlists, fabricado por um time de compositores especializados em criar refrões “chiclete”, de autenticidade questionável. Esses empreendimentos não se preocupam em fazer arte, só em gerar lucro, reduzindo a música a uma commodity. Portanto, o recado é simples: peguem esse “hit” e devolvam-no à fossa de onde ele jamais deveria ter saído.
Por falar em fossa, convenhamos: que ironia macabra que o palco da celebração de ostentação seja Balneário Camboriú, um lugar onde quase todas as praias encontram-se impróprias para banho graças ao precário saneamento básico proporcionado por seus governantes (e onde 75% do eleitorado votou no Bozo em 2022, estou começando a enxergar uma conjuminância aí, hein?).
Isso, sim, é quase poético: música e locais convergindo, como símbolos perfeitos de sujeira e poluição - sonora, literal ou política.
Haja sal de fruta.
Este substack sempre será gratuito. Mas se você tem pouco amor às retinas e não lhe fará assim, tanta falta, considere contribuir com a causa: escolha um dos planos (mensal, anual ou “Caba de Pêa”) e permita que este aspirante a escriba converta seu valioso contributo em cervej… Digo, em fraldas, para as minhas infantes. Um abraço!
Lamento, Marcone. Dei uma volta na cidade em final de março de 2023, fora da temporada. Só caminhei de uma ponta a outra, cancelei minha reserva e fui embora. Peguei uma virose, que me derrubou por uma semana. Tem cagalhão na água, bactérias e fungos na praia, mais vários tipos de vírus no ar. É vergonhoso mesmo. Nunca mais irei aí. Fiquem bem e não adoeçam! Abração! Rô😨